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Além do prato

  • lauras05
  • há 1 minuto
  • 7 min de leitura

Do preparo às lembranças, a comida pode ser o elo das relações


Texto Hyan Martins e Juliana Ramos


Chef Beto Morais explica as proporções e dicas de consumo enquanto demonstra o preparo dos dadinhos de tapioca. Foto: Juliana Ramos
Chef Beto Morais explica as proporções e dicas de consumo enquanto demonstra o preparo dos dadinhos de tapioca. Foto: Juliana Ramos

O fritar do óleo, o aroma dos temperos e a curiosidade nos rostos marcaram a passagem da Carreta-Escola de Gastronomia do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), pelo coração de Campo Grande na última quinzena de setembro. Estacionada na agitada rua Marechal Rondon, em frente ao Pátio Central Shopping, a unidade móvel atraiu os pedestres com seus cursos gratuitos,  de até uma hora,  levando às pessoas de truques que vão desde a comida do dia-a-dia, até a alta gastronomia, abrindo ainda  caminhos para o futuro profissional.

Com um tom de voz acolhedor porém cheio de autoridade, o professor e chef Beto Morais explica o passo a passo de como fazer dadinhos crocantes de tapioca, enquanto divide segredos de preparo e informações sobre os pratos. “Foi em cima de um erro que esse prato foi desenvolvido, o chef Rodrigo Oliveira queria desenvolver uma receita que lembrasse a cozinha mineira. Quando ele foi fazer, errou o ponto, ela ficou seca e ele queria um creme. Ele falou: ‘E agora, como vou fazer o creme?’, teria que refazer, mas teve uma ideia, o prato tem textura e o queijo, se você souber fritar, fica crocante. Ele falou ‘Vou colocar esse queijo e cortar em quadradinhos”.

Participantes acompanham cada gesto do professor, pensando em como irão servir para a venda ou em que momento vão preparar em casa. Foto: Hyan Martins
Participantes acompanham cada gesto do professor, pensando em como irão servir para a venda ou em que momento vão preparar em casa. Foto: Hyan Martins

O professor explica que dentro da cozinha, um erro significa desperdício e ninguém quer isso. Foi com esse pensamento que o cozinheiro conseguiu esse prato que tem  uma crosta crocante que quebra com facilidade, revelando uma massa quente e macia e o sabor salgado e marcante do queijo coalho. Hoje, os dadinhos de tapioca são servidos como aperitivos em restaurantes, botecos e eventos.

Aos poucos, a carreta, que tem mais cara de cozinha, é preenchida pelo cheiro marcante de fritura, aroma que anuncia a transformação dos ingredientes no prato final e sinaliza a falta de um exaustor que limpe o ar do ambiente fechado. Os alunos se posicionam com caneta e papel na mão. Com olhar focado, registram tudo e trocam sorrisos de surpresa a cada etapa finalizada, alguns até ficam em pé para observar o preparo de perto.

Quando aparecem os questionamentos, ou até mesmo mitos populares na cozinha, o professor esclarece tudo dando conselhos para prevenir.  “Professor, dizem que quando a gente joga um fósforo no óleo quente e ele acende isso significa que está quente suficiente para iniciar fritura?”, uma das cursistas pergunta. “Não, de jeito nenhum. O recomendado é medir a temperatura, para ter segurança e porque o óleo precisa chegar a 180° graus para que a fritura fique no ponto certo”, esclarece o professor.

Os diversos pensamentos sobre comida e cozinha são vistos quando iniciam os questionamentos e comentários. “Por que você está aqui? Vai me dizer que quer cozinhar também?!”, perguntou uma das senhoras participantes. Impressionada ao ver um homem no curso, ria incrédula com a sua participação. Momento em que mais do que receitas e técnicas, mostra que a cozinha também é um espaço de diálogo que além de reforçar laços, pode questionar intolerâncias

Enquanto alguns assistem às aulas para passar o tempo e fugir da solidão, outros desejam aprimorar suas vendas ou começar a ganhar uma renda extra com comida. Um exemplo de como um mesmo alimento pode proporcionar diferentes experiências e relações entre as pessoas é visto quando uma das alunas pega o celular para mostrar para todos a finalização com rúcula que fazia em seus dadinhos de tapioca para venda, ao tempo que outra brincava que, para a sua família, seria preciso bem mais que duas porções.


Histórias que se encontram na comida


É nesse ponto que as histórias se cruzam. Assim como os alunos da carreta, outros trabalhadores da cidade também encontram na gastronomia um caminho para sustento e afeto.

Com 65 anos, cabelos brancos e olhos grandes curiosos e receptivos, Erson Carlos Gomes passa a maior parte de seus dias pela rua 14 de julho. Pela manhã, ele prepara a massa com cuidado para ficar bem cozida e amassada, em seguida, limpa a sua cozinha garantindo que tudo fique higienizado. Para ele, essa é a parte mais essencial do trabalho, é quando demonstra o amor pelo o que faz.

Entre 11 horas e meio dia,  ele chega ao centro da cidade com seu carrinho que chama a atenção de qualquer criança. O boné na cabeça mostra que a tarde será longa e é preciso se esconder do sol. Nesse momento, perto dos banquinhos de concreto da rua, a venda de churros se inicia. “Não tenho pressa de ir embora, vou sair daqui às 19 horas,  até chegar em casa serão quase 21 horas. Mas, é um prazer, minha alegria é isso, estar trabalhando”, comenta o vendedor, ao lado de dois senhores que aproveitam o lugar e a companhia para passar o tempo.

Suas boas histórias com a comida vêm da infância, muito antes do carrinho de churros, quando sua mãe o ensinava e a seus 12 irmãos. “Todo mundo tinha que ir para a roça, com exceção de um que ficava para cuidar da casa e cozinhar. Todo dia era um, então os meninos também queriam ficar para não ir para a roça. Foi assim que aprendemos a cozinhar.”

Erson Gomes, conta sobre memórias de infância e sabores que atravessam o tempo. Foto: Hyan Martins
Erson Gomes, conta sobre memórias de infância e sabores que atravessam o tempo. Foto: Hyan Martins

Erson Gomes também recorda do forno de cupim. Com gestos e animação para compartilhar, explicou que o forno é feito do cupinzeiro raspado e depois queimado. Foi nele que fez os melhores bolos. Na cozinha, ele usa as dicas da mãe para fazer excelentes bolinhos de chuva que não absorvem óleo, trabalha com churros e faz bolos. Mas, também bate diferentes frutas com beterraba, couve ou cenoura, pois acredita que a alimentação tem grande importância para uma vida saudável e vê os sucos nutritivos como uma saída para consumir as vitaminas e nutrientes.

Beto Moraes encontrou na gastronomia a realização de um propósito que começou ainda na infância, quando ajudava em casa e descobriu a afetividade presente no ato de cozinhar. Antes de se dedicar à cozinha, trabalhou como gerente comercial em uma empresa de rastreamento, mas logo percebeu que a rápida evolução tecnológica poderia colocá-lo fora do mercado em pouco tempo. Essa reflexão o levou a buscar uma profissão que garantisse não apenas emprego, mas também estabilidade e significado. Sua trajetória foi marcada por esforço e humildade: começou como ajudante, lavou muita louça em eventos e aprendeu que cada etapa era fundamental para valorizar o trabalho em equipe e adquirir bagagem.

 “Eu vejo a gastronomia como uma forma de dizer para uma pessoa estranha que eu gosto muito dela. Então eu vou oferecer o que há de melhor”, relata o cozinheiro, explicando que o afeto é a palavra chave que dita a forma como apresenta o prato no restaurante, assim como auxilia o desenvolvimento infantil e os laços familiares.  “As crianças precisam sair do celular e nós precisamos fornecer meios para isso. Trazer elas para dentro da cozinha é uma forma de fazer isso. Receitas fáceis, que não envolvam fogo, já ajudam a aumentar os laços. Eu faço isso com meus filhos.”

Hoje, como docente do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Beto compartilha essa vivência com os alunos, ressaltando que a cozinha é muito mais do que receitas prontas. “Eu falo que ser chefe de cozinha não é dar ordens, mas delegar funções, com responsabilidade e critério”. Para ele, a gastronomia é também uma forma de transformação social, capaz de abrir portas para famílias de baixa renda e estimular o empreendedorismo. “Muitos alunos vêm de famílias com renda baixa, e quando mostramos que eles podem empreender dentro de casa, isso é libertador”. Mais do que ensinar técnicas, Beto defende que a cozinha transmite experiências, constrói memórias e fortalece vínculos, seja dentro da sala de aula ou ao redor de uma mesa.


Mesa cheia de pessoas e lembranças


Rosenir aproveita todo tempo disponível para aprender um pouco mais, hoje cozinha para a família, mas planeja iniciar a venda de bolos de potes. Foto: Hyan Martins
Rosenir aproveita todo tempo disponível para aprender um pouco mais, hoje cozinha para a família, mas planeja iniciar a venda de bolos de potes. Foto: Hyan Martins

Uma mesa grande para caber toda a família, os pratos e talheres posicionados e o cheiro único da comida de vó saindo das panelas, anunciando que está na hora de se juntar à mesa. É essa sensação que motiva Rosenir dos Santos Martins a manter uma sala de jantar em casa, reunindo os quatro filhos e suas famílias. “Ultimamente eu não gosto de preparar almoço e jantar no dia a dia, mas quando meus filhos ou netos estão em casa, eu adoro fazer, porque sempre dizem que a comida de mãe e de avó é muito boa”.

Toda vez que sente cheiro de chipa saindo do forno ou come uma sopa paraguaia, Dona Rosenir se sente transportada. É como se estivesse na fazenda da sua infância, onde seus avós Teodoro e Adélia moravam, tudo passa a cheirar pão caseiro e comida de roça. Hoje, é um jeito de matar a saudade dos familiares já falecidos.

Ela conta que em casa, os preparos de alimentos são bem divididos, normalmente as refeições e pratos salgados são feitos pelo marido e ela se encarrega dos doces, principalmente bolos. Seus pratos são tão desejados que tendo aniversariante ou não, os bolos recheados sempre estão presentes na mesa da família. “Até quando não tem aniversário, minha nora pede um bolo montadinho, com cara de festa”.

Com voz suave, Dona Rosenir demonstra que as relações entre as pessoas e a comida vão do preparo até a mesa. “Eu adoro participar do almoço, do café da manhã e do jantar quando os outros fazem. Acho que é um momento sagrado e ao invés de sentar em cômodos separados, envolvidos em outras atividades, é um momento de conversa entre a família.

Ela assiste às oficinas desde as primeiras aulas, reconhecendo a culinária como uma oportunidade de aprender e aplicar em ocasiões futuras. “A gente morre e sempre tem algo a aprender. Mesmo sem colocar a mão na massa, só de assistir, a gente pega os truques. É diferente de ver na TV, porque aqui a gente sente o cheiro, vê de perto e ainda prova depois”, comenta entusiasmada.

Clique no link para ver mais histórias sobre tradições e comidas: https://youtube.com/shorts/_Y_RcojBVrE?feature=share

 

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