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Uma história tatuada na pandemia

  • Foto do escritor: CAMILA RODRIGUES CUNHA
    CAMILA RODRIGUES CUNHA
  • há 4 dias
  • 4 min de leitura

Tatuadora de Três Lagoas iniciou sua trajetória a seis anos atrás e hoje conquista estúdio na capital sul-mato-grossense


Anna Beatriz de Abreu e Joyce Adono


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foto: acervo pessoal


Quando Angélica Santos, hoje com 33 anos, realizou sua primeira tatuagem profissional, o mundo estava prestes a fechar. Era 2019 para 2020, e a tatuagem ainda era um território novo, uma habilidade que ela começou a desenvolver após abandonar a faculdade de Engenharia e deixar o salão de beleza chamado “dedo D’Prosa”, espaço que era dela e onde outras meninas trabalhavam ao seu lado, Aprendeu o básico com uma amiga e, aos poucos, fez da tatuagem sua única fonte de renda, justamente no período mais improvável para iniciar uma carreira.

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia da COVID-19. Enquanto outros profissionais fechavam as portas, a tatuadora precisava mantê-las abertas. Sem outra fonte de renda, entrou na pandemia tatuando, e foi nesse cenário que sua profissão realmente começou. “Eu não tive tempo de começar devagar. Foi tudo de uma vez. Aprender, trabalhar e sobreviver”, diz. O que, para a maioria dos tatuadores, é um início gradual, com cursos, eventos e convivência com outros artistas, para ela se transformou em um processo marcado por máscaras, álcool 70% e sessões carregadas de preocupações.

Nos primeiros meses, atendia em casa. Plastificava cada superfície, trocava luvas com frequência e evitava qualquer contato físico que não fosse necessário. O aprendizado técnico se misturava à adaptação sanitária. Entre uma linha e outra, a profissional tentava entender como manter um estúdio funcionando enquanto o país entrava em colapso. “Eu comecei a tatuar no medo”, diz ela.

Durante os meses, percebeu que o perfil de quem a procurava também mudava. Muitas pessoas buscavam uma forma de registrar perdas. Por iniciar a carreira em período pandêmico, sua formação como tatuadora nasceu acompanhada da função de acolher os sentimentos de seus clientes. As primeiras experiências marcantes que teve na profissão não foram obras grandes ou desafios técnicos, mas histórias de despedidas.

Letícia Fugiyama é a protagonista da história de despedida mais transformadora para Angélica e seu trabalho. Feita em 2021, logo após o falecimento da irmã mais velha da cliente por complicações de covid-19, a homenagem à memória da irmã foi tão significativa para Letícia que afirma que apesar de ter sido sua primeira tatuagem permanece sendo sua favorita até hoje. Muito disso se dá pela delicadeza e compaixão em que foi recebida por Angélica no estúdio, um ambiente muito receptivo e compreensivo com o momento tão vulnerável que ela e a família se encontravam.



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Tatuagem em homenagem a irmã

(foto: Acervo pessoal)

Com a repetição de casos como esse, Angélica ajustou seu próprio olhar sobre o trabalho. Estudava técnicas à noite e, durante o dia, preparava o ambiente para receber pessoas em luto, com música calma ou escolhida pelo cliente, chá quente e seu jeito acolhedor. Era um começo focado no exercício de escutar o outro, algo que moldou a sua identidade profissional desde cedo. “No fim, eu aprendi que cada pessoa chegava trazendo um mundo inteiro. Eu precisava estar ali de verdade, não só como artista”, relata.

O impacto emocional era grande. Angélica precisou lidar com o medo diário de contaminação e com clientes que chegavam fragilizados, muitas vezes em prantos. “Aprendi a tatuar e a acolher ao mesmo tempo. Foi tudo misturado.”, conta.

Em 2021, quando perdeu o pai, viu sua própria história se aproximar das que ouvia desde o início da pandemia. Mesmo abalada, manteve a sua rotina, separando a sua dor da dor dos clientes. A experiência reforçou a percepção de que a tatuagem era mais do que estética, era um registro simbólico, uma tentativa de permanência em tempos instáveis e de uma lembrança presente.

Cinco anos depois da declaração da pandemia, os dados no Brasil ajudam a dar dimensão ao contexto que marcou o início da carreira da jovem. Segundo estatísticas nacionais, o país registrou cerca de 39 milhões de casos confirmados em decorrência da covid-19 e mais de 715 mil mortes. Mato Grosso do Sul contabilizou cerca de 638 mil infectados e mais de 11 mil mortes.

Atualmente, com o estúdio estruturado, localizado em Campo Grande, com plantas espalhadas e paredes cobertas de artes, Angélica reconhece que sua carreira nunca irá se separar daquele começo complexo. “Se eu tivesse começado em outro momento, talvez eu fosse outra tatuadora. A pandemia moldou tudo. Meu jeito de trabalhar, de receber e de sentir”, afirma.



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  foto: Acervo pessoal


O período crítico da pandemia  moldou seu traço, sua postura profissional, seu lado humano e sua relação que construiu com o público. Aprendeu a ser cuidadosa não apenas com a execução do traço, mas com o ambiente, as palavras e a atenção. A tatuagem, que entrou em sua vida como alternativa improvisada, se tornou profissão justamente quando o mundo parecia suspenso. E foi naquele vazio social que Angélica encontrou não apenas um ofício, mas um papel de transformar histórias difíceis em marcas que permanecem.

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