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A fome dentro de casa: desafios de quem enfrenta a insegurança alimentar em Campo Grande

  • lauras05
  • há 1 dia
  • 3 min de leitura

Entre renda instável, políticas públicas insuficientes e dados que não dialogam entre si, famílias campo-grandenses mostram como a insegurança alimentar se manifesta de maneira silenciosa, persistente e desigual


Ana Porangaba, Emilenne Queiroz e Luana Passini


Milhões de brasileiros são afetados pela insegurança alimentar devido à questões financeiras  Foto: freepik
Milhões de brasileiros são afetados pela insegurança alimentar devido à questões financeiras  Foto: freepik

A insegurança alimentar segue como um dos desafios sociais mais urgentes em Campo Grande. No cotidiano, surge nas mesas vazias, nas refeições reduzidas e nas adaptações silenciosas que famílias inteiras fazem para conseguir comer. Para a nutricionista e professora da UFMS, Bruna Rafacho, compreender o problema exige ampliar a percepção comum sobre a fome. Ela explica que a insegurança alimentar ocorre quando a pessoa “não tem alimento adequado, em quantidade suficiente para manter a sua saúde e as suas atividades viáveis”.

A nutricionista lembra que a forma como muitos se alimentam também pode refletir insegurança: “Na nutrição, a gente considera também o excesso de peso e obesidade como uma das faces da insegurança alimentar e nutricional”. Isso acontece quando alimentos básicos e frescos se tornam inacessíveis, levando famílias a recorrerem a opções mais baratas e ultraprocessadas, de menor qualidade nutricional. A desigualdade também aparece com clareza nos grupos mais afetados: “Negros e indígenas têm uma maior situação de insegurança alimentar, além de crianças, idosos e mulheres que são um grupo de risco porque também estão num ciclo de vida vulnerável”.

Enquanto especialistas apontam para a complexidade estrutural do problema, as vivências da população confirmam que a insegurança alimentar tem muitas formas de se expressar                    Foto: Luana Passini
Enquanto especialistas apontam para a complexidade estrutural do problema, as vivências da população confirmam que a insegurança alimentar tem muitas formas de se expressar Foto: Luana Passini

A dona de casa Ivonete Cruz descreve uma rotina marcada por restrições. Ela conta que, em sua casa, a última refeição do dia praticamente não existe: “Nós não jantamos, é muito raro jantarmos”. A alimentação, segundo ela, se concentra no básico: arroz e feijão. Mas confessa: “Não faltou arroz e feijão, mas faltou carne”.

A interrupção de ações públicas também contribuiu para o aperto alimentar em sua casa. Um programa que distribuía verduras semanalmente deixou de existir: “Aqui tinha antes, que dava uma sacola de verduras. Agora não dá mais. Acabou”. Sem essa ajuda, a variedade no prato diminuiu. Ainda assim, Ivonete destaca que, mesmo fora do poder público, parte da própria população tenta suprir essas lacunas e a dona de casa destaca como uma ação muito importante. “Tem muita gente passando fome. Tem muita gente tentando só comer”. E revela como atos solidários se tornam fundamentais em comunidades onde a fome está sempre à espreita.

A história de Stephanie Godoy também ilustra como a alimentação de uma família pode depender de um único dia de trabalho. Ela conta que já passou por período em que faltou carne na refeição e o motivo também está ligado à falta de renda. “Meu marido estava impossibilitado de trabalhar e ficou sem serviço e faltou a mistura”. Para quem depende de trabalhos informais, qualquer imprevisto pode comprometer a alimentação de uma semana inteira. Stephanie descreve essa instabilidade: “Meu marido é pedreiro e se chove não dá para ir trabalhar e já fica sem uma diária. Mesmo sua família recebendo o auxílio Bolsa Família do governo,  a imprevisibilidade permanece.

A dona de casa Luciana Leite do Carmo enfrentou uma situação semelhante quando o marido se acidentou e a família passou a depender de ajuda para manter a alimentação. Ela também tinha apoio do Instituto Social Ajudar e Cuidar (ISAC), que distribuía verduras, mas que não fazia mais parte de nenhuma das suas fontes de alimentação. Nas periferias, esses auxílios, mesmo pequenos, representam não apenas comida no prato, mas também a garantia de que a alimentação não será completamente repetitiva e limitada.

Do ponto de vista da gestão pública, um dos maiores entraves para enfrentar a fome em Campo Grande é a ausência de dados integrados. Segundo a professora e nutricionista Bruna Rafacho, ainda não é possível mapear plenamente quem está em situação de insegurança alimentar: “A gente tem uma subnotificação desses números”. Os registros existem, mas estão espalhados em sistemas e órgãos que não se comunicam entre si. A consequência disso é a invisibilidade de milhares de famílias que não entram nas estatísticas formais. Para a professora, o caminho é claro: “É importante que os setores trabalhem para encontrar e mapear e ter esses dados de quem realmente está em insegurança alimentar e nutricional”.

Enquanto esse mapeamento não acontece de maneira eficiente, famílias campo-grandenses continuam construindo estratégias próprias para lidar com o que falta. Algumas diminuem refeições, outras substituem alimentos por versões mais baratas, algumas dependem de doações e muitas esperam que políticas públicas, projetos sociais ou a renda de amanhã possam amenizar as incertezas de hoje. A insegurança alimentar, no fim das contas, é mais do que um dado, é uma realidade constante, que se renova a cada refeição improvisada e a cada alimento que falta no armário. Para quem vive nela, não é apenas fome, é sobrevivência.

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