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Xenofobia silenciosa

  • lauras05
  • há 3 dias
  • 8 min de leitura

Imigrantes enfrentam preconceito e omissão estatal em Mato Grosso do Sul


Isadora Colete, Julia Nogueira, Murilo Medeiros e Pietra Dorneles



Praça dos Imigrantes, no Centro de Campo Grande, já foi palco de encontros culturais, mas hoje é tomada por mato alto e pessoas em situação de rua (Foto: Isadora Colete)
Praça dos Imigrantes, no Centro de Campo Grande, já foi palco de encontros culturais, mas hoje é tomada por mato alto e pessoas em situação de rua (Foto: Isadora Colete)

“É só uma brincadeira”, é o que dizem. Mas por trás do sotaque imitado, dos apelidos forçados e das perguntas invasivas, muitos imigrantes que chegam a Mato Grosso do Sul enfrentam um preconceito velado disfarçado de piada, uma xenofobia silenciosa que se estende à omissão Estatal em garantir políticas públicas de apoio a essa população. “Eles faziam muitas piadas e eu não entendia, mas é aquele famoso jeitinho brasileiro, né? Disfarçado”, descreve o fotógrafo Angel Palomares, 32 anos, que chegou do Peru há 12 anos.


Mas nem sempre é tão disfarçado assim. Em um de seus trabalhos fotográficos, Angel se viu em uma situação bastante desconfortável. Durante a entrevista, ele precisou orientar o entrevistado sobre como se posicionar para a captura da foto. Assim que o homem ouviu seu sotaque, questionou de onde Angel era, demonstrando desdém apenas por ele ser estrangeiro, chegando inclusive a comparar bolivianos e peruanos de forma pejorativa. "Não, eu já conheço o pessoal de lá, não gosto muito. Estou realmente incomodado, prefiro dar meu depoimento apenas para a jornalista". Constrangido, Angel apenas tirou a foto rapidamente e se retirou do local.


Ao sair da sala, ficou se perguntando se o problema realmente era com ele, talvez por ainda não falar português fluentemente. Esse episódio o fez repensar se realmente queria viver em um lugar onde as pessoas o tratavam de forma diferente, e às vezes até maldosa, apenas por ser de outro país. “Eu pensei, ‘por que isso está acontecendo? Eu estou aqui fazendo o meu trabalho, não estou fazendo mal a ninguém.’ E foi um momento que eu reavaliei muito muito a possibilidade de sair daqui”.


Para César Augusto Filho, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e coordenador da Liga Acadêmica de Direito Internacional dos Refugiados (Ladir), este tipo de preconceito é incoerente com as raízes da cultura brasileira. “Falta um conhecimento maior da própria população e da comunidade civil para não tratá-los com desdém ou com aquela máxima do ‘volta para seu país’. Com exceção dos indígenas, não há nenhum brasileiro que não tenha ancestralidade ligada aos imigrantes, que vieram para o Brasil no século 19 ou início do século 20, quando a imigração era política de Estado”.


Assim como o Brasil, Mato Grosso do Sul é um estado formado por imigrantes bolivianos, paraguaios, venezuelanos, japoneses, haitianos e de outras nacionalidades. “O Brasil é um país de imigrantes, construído com mão de obra imigrante, é muito paradoxal brasileiros manifestaram preconceito contra essa população”, explica César Augusto Filho.


Entre janeiro e novembro de 2024, Mato Grosso do Sul recebeu 3.817 mil novos imigrantes como Angel, segundo dados do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra). Desses, 3.594 foram classificados como temporários e 223 como residentes permanentes. A maior parte dos imigrantes vieram da Venezuela, com 1.756 registros no período. Em seguida, aparecem os paraguaios, que foram a segunda nacionalidade mais registrada no Estado, com 1.142 pessoas, e os bolivianos, com 435 registros.


Entre as cidades sul-mato-grossenses, Campo Grande lidera como a que mais recebeu imigrantes entre janeiro e novembro de 2024, com 969 registros. Em seguida aparece Dourados, com 935 imigrantes, e Ponta Porã, com 352 registros. O professor César Augusto Filho explica que existem várias formas dessas pessoas chegarem ao Brasil. “Não existe um padrão migratório, porque há diversas formas de chegar ao Mato Grosso do Sul. Muitos passam por três ou quatro países, e entram no Brasil via Corumbá, por terra”.


É o caso de Angel Palomares, que em 2013 saiu do Peru e passou pela Bolívia para chegar em Corumbá. De lá, parou em Campo Grande e seguiu viagem até Chapadão do Sul, onde mora e trabalha. Foram 3.730 km percorridos de ônibus para chegar até a casa de um primo, que já morava em Chapadão. Após três meses morando no Brasil como turista, Angel decidiu viver aqui permanentemente e começou o processo para documentar-se. 


Para isso, Angel precisou viajar 327 km de Chapadão do Sul a Três Lagoas mais de uma vez. “Eu tinha que ir para lá e voltar. Daí eles me chamavam e eu tinha que ir de novo. Ver documentos, coletar as digitais, tudo”. Entre idas e vindas, o avô de Angel morreu e ele precisou voltar ao Peru. Depois de um período de luto e certo de que seu futuro era no Brasil, Angel Palomares voltou ao país, desta vez de avião. Ele portava um documento comprobatório de que estava em processo de regularização e que poderia entrar no Brasil.


Assim que desembarcou, um oficial da imigração brasileira tentou impedir que Angel entrasse no país. “Ele falou assim: ‘você pode voltar para o seu país, não quero saber de você, não quero saber de estrangeiro indocumentado aqui’. E expliquei e mostrei meu documento, mas ele continuou dizendo que não queria saber”. Só após a intervenção de outro agente da Polícia Federal, chamado por Angel, ele foi liberado para entrar no Brasil. 


Para o professor César Augusto Filho, Angel não é o único imigrante a sofrer com a falta de conhecimento daqueles que mais deveriam ter propriedade no assunto. “A burocracia brasileira também é uma barreira. Basta as autoridades saberem a lei para que isso não aconteça, falta treinamento”. Isso faz com que direitos básicos, como a utilização do Sistema Único de Saúde (SUS), sejam negados a imigrantes por falta de documentação adequada. “Eles não podem ser impedidos de ter atendimento, mesmo que não tenham nenhum documento, porque às vezes chegam só com a roupa do corpo. O sistema é pautado pela universalidade”.


Necessidade e exploração


Nem todos que imigram ao Brasil vêm de forma legal. O professor César Augusto Filho explica que há casos em que criminosos se aproveitam da situação de vulnerabilidade dos migrantes. “Alguns migram para tentar trabalho em São Paulo ou no Rio de Janeiro, mas são assaltados pelos chamados coiotes, pessoas que prometem empregos em outros países, se os migrantes deixarem todo o dinheiro com eles”. 


Vítimas dos coiotes podem acabar em situação de rua, porque perderam todo o dinheiro no caminho, ou ainda serem trazidas para trabalhar em situação análoga à escravidão no Brasil. Com pouco conhecimento das leis trabalhistas do país e muita necessidade financeira, eles se tornam presas fáceis para os criminosos, inclusive em Mato Grosso do Sul.


Mirtha Carpio, presidente da Associação de Venezuelanos em Campo Grande, afirma que tomou conhecimento de casos deste tipo em 2025. “Meninos venezuelanos estavam trabalhando e chegaram até mim dizendo que mal eram pagos, não comiam e precisavam passar a noite em um galpão, quase sem teto e sem janela. Há pessoas que pagam cinquenta reais para um trabalho”. Mirtha denunciou o caso à polícia e acompanha a investigação.


Mesmo aqueles que chegam e moram legalmente no Brasil têm dificuldade em conseguir emprego por aqui. “Grande parte tem curso superior, mas não consegue trabalhar na área deles para sobreviver. Eles precisam ser inseridos no mercado de trabalho brasileiro de forma correta, em suas áreas de especialização. A barreira está ligada à validação desses diplomas, é necessário pagar uma taxa que chega a R$8 mil”, explica o professor César.


Algumas universidades públicas, como a UFMS, implementaram políticas que isentam os imigrantes da taxa de revalidação de diploma. Com 27 certificados revalidados desta forma em 2024, a UFMS fica atrás apenas da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Para que o processo seja possível, é necessário que a formação, a carga horária e as disciplinas do país de origem tenham ligação com as da instituição de ensino brasileira.


A segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul, Dourados, recebe fluxo migratório de refugiados venezuelanos para trabalhar. “Eles entram no Brasil por Roraima e um dos pontos da Operação Acolhida é a interiorização deles para vários estados, inclusive Mato Grosso do Sul. Nesse caso, geralmente vão para Dourados, trabalhar em frigorífico”, afirma o professor César Augusto Filho.


ACOLHIDA

A Operação Acolhida foi criada em 2018, inicialmente por Medida Provisória e depois convertida pelo Congresso Nacional na Lei nº 13.684/18, para estabelecer ações de assistência emergencial e acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária, como a que acontece na Venezuela. Naquele ano, 10 mil pessoas entraram no Brasil por Roraima e sobrecarregaram os serviços do estado.


A interiorização promovida pela Operação Acolhida é a realocação voluntária e gratuita dessas pessoas, dos municípios de Roraima para outras cidades do Brasil. No caso de Dourados, citado pelo professor César, a interiorização é feita pela 4ª modalidade.


As modalidades de interiorização são:

  1. Institucional: Saída de abrigos em Roraima para abrigos em uma das cidades de destino (Governamental ou sociedade civil parceira).

  2. Reunificação Familiar: Migrantes que desejam reunir-se com seus familiares que residem regularmente em outras regiões do país, estejam dispostos e tenham condições de oferecer apoio e moradia.

  3. Reunião Social: Migrantes que desejam reunir-se com indivíduos com quem possuam vínculo afetivo, ou familiares cujo vínculo não possa ser comprovado por meio de documentação. Os receptores devem ter condições de garantir o sustento e a moradia dos acolhidos.

  4. Vaga de Emprego Sinalizada (VES): Deslocamento de migrantes e refugiados que receberam sinalização de oportunidade de trabalho por empresas brasileiras de todas as regiões do país. Os migrantes selecionados são apoiados pela Operação Acolhida para o deslocamento até o município onde serão contratados. São verificados os antecedentes das empresas para prevenir situações de exploração laboral. Também recebem apoio social.

Fonte: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome



Ajuda sem estrutura


Para o professor César Augusto, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o Estado ainda trata questões migratórias de maneira reativa. “A importância dada aos imigrantes pelos diversos governos brasileiros é zero. A Operação Acolhida, por exemplo, só foi criada porque os imigrantes venezuelanos começaram a chegar às cidades pequenas de forma desordenada, em grupo, e tomaram rodoviárias. A estrutura e os serviços públicos das cidades não aguentaram”.


Mato Grosso do Sul começou a reagir à chegada dos imigrantes a partir de 2016, quando foi criado o Comitê Estadual para Refugiados, Imigrantes e Apátridas do estado. “Ele continua existindo, mas as políticas desse comitê são tímidas. Assim que aparece um grupo de haitianos, um grupo de venezuelanos, a assistência social vai lá ajudá-los, arrecadar fundos, por exemplo”. Campo Grande, Corumbá e Dourados também criaram seus comitês municipais. “Mas eles criam políticas públicas à medida que os imigrantes tornam-se um problema. Grande parte dessas políticas dependem de repasses do Governo Federal”, opina o professor.


Mas existem organizações próprias que prestam auxílio a essas pessoas. Como a Associação de Venezuelanos em Campo Grande, uma iniciativa voluntária de venezuelanos e brasileiros que se uniram para levar apoio, informação e ferramentas para as famílias venezuelanas que chegam à cidade, para conseguirem melhores condições de vida e estabilidade. 


A associação é presidida por Mirtha Carpio há 6 anos. Mirtha diz que os objetivos do grupo de voluntários sempre foram orientação, informação e apoio logístico, além de apoio documental, como onde e como tirar sua documentação. “Nosso intuito é dar informação, mostrar que não estão sozinhos, de que as leis são tão iguais para um brasileiro como para um migrante internacional. Eles têm que conhecer e saber essas coisas”.


Mirtha diz que querem ajudar como sociedade civil, mas que não há apoio do governo. “Não temos uma sede e nem salário, não temos onde blindar essa ajuda.” Assista ao vídeo:





Desde 2020, a UFMS tem um acordo com o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), que estabelece políticas de cumprimento dos direitos internacionais de refugiados. Isso impulsionou o trabalho de outra entidade que apoia esta população, a Ladir, grupo independente de estudantes de todos os períodos e de vários cursos, coordenado pelo professor César Augusto Filho. 


A Ladir realiza atividades de ensino, pesquisa e extensão. Projetos de ensino são ideias que vêm dos próprios alunos, como palestras sobre mulheres e crianças refugiadas, número de refugiados e imigrantes em Mato Grosso do Sul e no Brasil. Projetos de pesquisa geralmente são feitos para participação em eventos, congressos e seminários, com artigos sobre Direito Internacional dos Refugiados. E os mais recorrentes são os projetos de extensão, que levam a Liga para fora da UFMS, como alunos que atenderam imigrantes para auxiliar na criação de CPF ou solicitação de refúgio, os ajudando a regularizar sua situação.


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