Seu trabalho está te adoecendo?
- lauras05
- 30 de abr.
- 7 min de leitura
Empregos tendem a exigir bastante e tomar uma boa parte da nossa vida. Mas, quando o trabalho passa a ocupar tempo demais, o direito ao lazer se torna um luxo distante
Fernanda Sá e Maria Gabriela Arcanjo

A cena é comum: e-mails fora do expediente, mensagens urgentes durante o almoço ou fins de semana e a sensação constante de que o trabalho nunca termina. A sobrecarga de tarefas e as longas jornadas têm se tornado a realidade de muitos trabalhadores brasileiros, com impactos cada vez mais visíveis na saúde mental e na qualidade de vida.
O trabalho ocupa boa parte da vida adulta, mas, quando ultrapassa os limites, pode se tornar uma fonte de adoecimento silencioso. Para muitos brasileiros, lidar com jornadas exaustivas significa abrir mão do lazer, da saúde mental e até da convivência familiar. Casos de ansiedade, depressão e estresse crônico ligados à sobrecarga profissional têm crescido de forma preocupante, revelando um problema de saúde pública que vai além dos escritórios.
O estresse prolongado tem efeitos profundos na saúde mental, compromete o bem-estar emocional e a qualidade de vida, afirma a psicóloga clínica Valeria dos Santos. Segundo ela, a exposição constante a situações estressantes eleva os níveis do hormônio cortisol no organismo, afeta o funcionamento do cérebro, o humor e a função cognitiva. “Problemas como ansiedade, depressão e insônia são comuns nesse cenário, agravando ainda mais a vulnerabilidade emocional das pessoas”, diz Valeria.
A psicóloga também alerta para mudanças de comportamento, como agressividade, irritabilidade e isolamento social, que prejudicam as relações interpessoais e a produtividade no trabalho. A ausência de momentos de lazer agrava quadros de ansiedade e depressão, de acordo com Valeria. Ela explica que o lazer atua como fator protetor, promovendo relaxamento, aumento da autoestima e recuperação de energias físicas e psíquicas.
No entanto, ressalta que “momentos de lazer podem não ser suficientes para quem já apresenta um transtorno”. Nesses casos, é necessário acompanhamento psicológico para ajudar o paciente a reinserir o lazer de forma estruturada na rotina.
Previsto na lei
Na Constituição Federal, tanto o trabalho como o lazer são tidos como direitos sociais, assegurados pelo mesmo artigo.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Entretanto, eles não são vistos como iguais. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, seis a cada 10 brasileiros afirmam não ter momento algum de ócio ou tempo livre durante a semana. Os dados, levantados em agosto de 2023, revelam a dificuldade de uma rotina balanceada entre trabalho e lazer, o que evidencia também como a sociedade enxerga atividades que não têm como finalidade ser produtivo.
Outro estudo feito pela Pulses, mostrou que 81% dos trabalhadores brasileiros se sentem esgotados em relação ao trabalho, 60% não sentem disposição para trabalhar e 51% apresentam dificuldades para cumprir suas atividades. Quando há o recorte de gênero, os dados assustam ainda mais: enquanto 75% dos homens relatam um esgotamento extremo (o que já é um número alto e preocupante), esse número sobe para 85% entre o público feminino.
Essa rotina trabalhista somada à falta de hobbies e momentos de descanso são a receita perfeita para uma palavra que cada vez mais se torna conhecida no mundo: o burnout. A Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional “é um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade. A principal causa da doença é justamente o excesso de trabalho”, de acordo com o site do Governo Federal. Em 2022, a síndrome passou a ser reconhecida como uma das doenças do trabalho pela Organização Mundial da Saúde.
Quando acontece comigo
Ouvir histórias e dados estatísticos parece distante, mas e quando nós começamos a perceber o esgotamento mental, a falta de tempo e o horário de descanso que nunca chega? O que fazer quando acontece comigo?
O historiador e ex-professor Alexandre Goicochea resolveu deixar a amada profissão para cuidar da saúde mental. Ele conta que, após 11 anos lecionando, teve que tomar a decisão de recalcular a rota da vida profissional, apoiado por um médico psiquiatra. Goicochea conta que constantemente se sentia extremamente cansado, enfrentava dores de cabeça, sono desregulado, ansiedade, dificuldades em fazer exercícios físicos e manter uma alimentação saudável e que não tinha mais fins de semana livres. “Ser professor atrapalhou muitos aspectos da minha vida social ao longo desses anos”.

O ex-professor relata o acúmulo de funções da profissão e o trabalho para além da sala de aula. “Muitas vezes, dar aula é o ponto final do trabalho, porque antes de chegar à sala, você planeja, monta, avalia. Então é um trabalho que é feito anteriormente e não é computado”. Por conta da paixão pela educação, Alexandre tentou mudar de colégio para “ver se aquele ânimo pela sala de aula voltava”, mas sem sucesso. “Chegou um momento que eu vi que aquilo estava estagnado e foi quando eu decidi mudar de área, agora com um outro olhar”.
Goicochea reconhece as dificuldades que implicam essa transição de carreira. “Essa mudança traz algumas inseguranças, claro, começar algo do zero [...], mas é um caminho de descobertas, de novas experiências”. Além disso, ele também lembra que o apoio de amigos e familiares foi fundamental nesse processo, assim como buscar ajuda profissional.
O estudante de Jornalismo Gabriel Isagawa conta que durante oito meses de sua vida, também se sentiu sobrecarregado. Com seis disciplinas na faculdade, um estágio e mais um trabalho no período noturno, ele começou a sentir os efeitos do burnout na rotina. “Eu estava muito irritado, muito estressado, eu não conseguia dormir, e se eu dormia, me sentia culpado por estar descansando. E na época, eu lembro que eu ficava muito agitado, eufórico e falando só de trabalho, não conseguia falar de outra coisa”.
Além da sobrecarga mental, Gabriel descreveu que o cansaço afetou também suas relações familiares. “Isso afetava minhas relações, afetava relações amorosas, amizade, família, e quando eu percebi, eu falei: nossa eu tô doente, eu preciso procurar ajuda. Hoje em dia, eu tento adequar o meu tempo, né, adequar o lazer ao meu tempo de trabalho”.
Vale ressaltar que algumas profissões exigem mais atenção do que outras pelo ritmo frenético de trabalho, como diz o próprio site do Governo Federal. “Esta síndrome é comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas, dentre outros”.
Lazer: luxo ou necessidade?
Que o papel do lazer é importante para a manutenção da saúde mental, não é novidade. Em Campo Grande - MS há iniciativas que visam justamente colocar em prática esse direito e de forma acessível. É o caso do projeto Yoga para Todos, criado em 2007, com o intuito de levar a prática a mais pessoas de forma democrática. Atualmente, os encontros acontecem duas vezes por mês no Parque das Nações Indígenas, de forma gratuita.

A diretora do projeto, Tatiane Fernandes afirma que a maior parte do público que chega até eles comenta que está sobrecarregada. “A maioria das pessoas que buscam, fala que está cansada, sobrecarregada, estressada, ansiosa, algumas com depressão, sempre na busca de algo que traga um bem-estar físico e mental. Mas, ao mesmo tempo, tem gente que, por conta disso, não consegue adequar o tempo para ir para as práticas”.
Sobre a falta de disponibilidade, Tatiane faz um alerta. “Para quem diz não ter tempo, eu aconselho se colocar em primeiro lugar, porque quando a gente está bem, tanto físico como mentalmente, a gente consegue estar bem para realizar as nossas tarefas, que seja no trabalho, nos estudos ou em relacionamentos”.
Diante da rotina acelerada e da dificuldade em reservar tempo para si, iniciativas que promovem o bem-estar de forma acessível tornam-se ainda mais essenciais. É nesse contexto que políticas públicas de lazer gratuito ganham relevância, oferecendo espaços e atividades que ajudam a aliviar o estresse, fortalecer o corpo e cultivar a saúde emocional.
Criado em 2017 pela Prefeitura de Campo Grande, em parceria com a Fundação Municipal de Esportes, o projeto Movimenta Campo Grande tem como objetivo ampliar o acesso gratuito a atividades físicas e de lazer na capital. A iniciativa foi consolidada por meio da Lei Complementar nº 327, sancionada em 2018, que institui o Sistema Campo-grandense de Esporte e Lazer.

Com uma proposta inclusiva, o projeto oferece diversas modalidades esportivas e recreativas, como pilates, yoga, zumba, dança, capoeira, futebol, beach tennis, atletismo, natação, hidroginástica e muito mais — contemplando tanto esportes individuais quanto coletivos.
Durante a pandemia da Covid-19, as atividades foram temporariamente suspensas. No entanto, desde janeiro de 2024, o projeto foi retomado com força total, expandindo sua atuação para as sete regiões urbanas de Campo Grande e reforçando seu papel como alternativa acessível de promoção à saúde física e mental da população.
O dever de cuidar
A responsabilidade para evitar quadros de adoecimento mental também é papel das empresas. É o que a RHF Talentos MS, uma empresa de soluções inovadoras em recursos humanos, reforça em uma publicação no Instagram. Nos tópicos do que compete aos empregadores estão estruturar jornadas equilibradas e promover flexibilização quando possível, disponibilizar apoio psicológico e canais de escuta para colaboradores e criar políticas internas que incentivem a saúde mental e o bem-estar.
Essa responsabilidade já é regulamentada e entrará em vigor a partir do dia 26 de maio. A exigência vem de uma reforma da Norma Regulamentadora n° 1 (NR-1), promovida pelo Ministério do Trabalho e Emprego no ano de 2024. A norma prevê que as empresas deverão realizar uma avaliação de riscos psicossociais, como estresse, assédio e carga mental, e gerenciá-las de forma protetiva à saúde dos funcionários.
Serviço de acolhimento
Se você, em algum momento desta reportagem, se identificou com os sintomas e acredita estar passando por algum mal psíquico, entre em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida) pelo telefone 188. O CVV oferece apoio emocional gratuito e o serviço está disponível 24 horas por dia.
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