Presente e passado conectados pela tradição cultural
- lauras05
- 16 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 29 de abr.
O artesanato e a gastronomia são elementos culturais preservados há mais de um século pela comunidade quilombola Furnas do Dionísio em Mato Grosso do Sul
Beatriz Barreto Cardozo e Glenda Rodrigues Oliveira

Peneiras e rapaduras são as principais expressões da tradicionalidade da população negra descendente de Dionísio Antônio Vieira, um escravo liberto que se fixou no estado em 1890. Originárias do artesanato e da gastronomia, essas produções estão relacionadas com a prática ancestral resultante da combinação de influências africanas e brasileiras: o cultivo de hortaliças, cana-de-açúcar e mandioca, mantido pela Comunidade Quilombola Furnas do Dionísio localizada em Jaraguari (MS), por meio da agricultura familiar e da economia criativa, que conectam o presente ao passado e difundem a tradição cultural.
Segundo informações do site da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a comunidade sul-mato-grossense remanescente de quilombo Furnas do Dionísio, está situada a 43 km de Campo Grande às margens da rodovia MS 080 e conta com uma área total de 1.031,8905 hectares constituída em predominância por chácaras e pequenos sítios que utilizam do agroextrativismo para a subsistência e geração de renda, isto é, do cultivo e extração baseados no manejo de técnicas sustentáveis de conhecimento tradicional, destinado tanto para o suprimento básico alimentar das cerca de 115 famílias residentes, quanto para a comercialização em menor quantidade do que é produzido ou coletado.
O local é banhado por pequenos córregos perenes e ribeirões que deságuam no Rio Aquidauana e promovem a alta fertilidade do solo, onde o cultivo da terra e a criação de animais são praticados desde a fundação, quando o ex-escravo Dionísio Antônio Vieira decidiu pela ocupação.
No final do século XIX, após a abolição da escravatura, muitos ex-escravos se estabeleceram em regiões estratégicas do Brasil à procura de liberdade e novas oportunidades, assim como fez Dionísio. Os moradores da comunidade quilombola são descendentes diretos dos nove filhos dele com sua mulher, Joana Luísa de Jesus. Esses filhos, formaram famílias com pessoas de outros municípios nos arredores, como Camapuã e Figueirão.
De acordo com dados do site do Governo Federal, a definição de quilombos pela língua banto (termos falados que possuem origens nas línguas de grupos étnicos e culturais de África Central e Ocidental) é “povoação”, mais precisamente, um espaço físico de resistência em que viviam africanos escravizados, fugidos ou libertados e seus descendentes. Eram agrupamentos criados para habitação onde poderiam se desenvolver em coletividade com mais autonomia e resgatar um estilo de vida parecido com o que tinham no continente africano, para garantir a própria sobrevivência e fomentar parcerias comerciais com moradores próximos.
Em Furnas do Dionísio não foi diferente, os quilombolas de Jaraguari se mantiveram pelo o que plantavam e pelos animais que criavam, como cana-de-açúcar, mandioca, milho, abóbora, banana, hortaliças e gado. Com o tempo, esses insumos foram aproveitados para o artesanato. Folhas de bananeira e palhas de milho se tornaram o material de fabricação das peneiras, nas quais a farinha de mandioca é trabalhada.
A farinha de mandioca, a rapadura, o melado e o açúcar mascavo são produções derivadas bastante características da tradição cultural ainda presente. Tal como os costumes herdados dos primeiros moradores, de acordar cedo, cuidar do pasto, do gado e praticar a confraternização comunitária.
Comunidade unida
A diretora de finanças da Associação dos Pequenos Produtores Rurais Quilombolas de Furnas do Dionísio, Vera Lucia Rodrigues, explica que no começo do século XX, o que era produzido pela comunidade era voltado ao consumo próprio e o que sobrava era vendido na cidade próxima, Campo Grande. Os produtos, como a farinha e a rapadura, foram ganhando destaque devido à boa qualidade, o que facilitou a circulação na vizinhança e a integração no mercado, incentivando a participação coletiva para o crescimento econômico local.
Em 1989, dentro da comunidade foi fundada a sede da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Furnas do Dionísio e com a união da população, logo surgiu a feira para comercialização das produções gastronômicas e do artesanato.
Trinta anos depois, em 2019, foi criada a feira que acontece a cada segundo domingo do mês e reúne visitantes de todas as idades e de diversos lugares do país. Em 2025, os turistas são atraídos, por exemplo, pela oportunidade de desfrutar de deliciosos almoços ao ar livre oferecidos na associação quando as feiras são realizadas. Além disso, algumas propriedades se tornaram atrativos turísticos, como balneários e ranchos, que disponibilizam durante todos os dias da semana, o melhor da gastronomia e do lazer local.

Culinária típica de Furnas do Dionísio em fogão à lenha. Foto: Beatriz Barreto
A representante do Coletivo de Mulheres Negras e mestranda em Educação e Territorialidade da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Luhhara Arguelho, destaca a feira quilombola como um meio para a difusão cultural da comunidade. “Esses espaços permitem que a comunidade compartilhe sua rica cultura e tradições com visitantes de outras cidades e regiões do país”. Segundo Arguelho, em Furnas do Dionísio há oportunidade para a promoção da identidade cultural e histórica, o compartilhamento das tradições e costumes, a abertura para expressar a criatividade e as habilidades artísticas, e o intercâmbio com outras comunidades. A geração de renda a partir dos laços comunitários formados permite a sustentabilidade e o desenvolvimento.
Um dos outros pontos altos que movimenta a economia de Furnas do Dionísio é o artesanato vendido na feira. A diretora financeira da associação comunitária acentua que as peneiras simbolizam o valor do trabalho que desenvolvem. “As peneiras deixaram se ser apenas utensílios domésticos e passaram a representar história da comunidade e hoje são peças de decoração. Mas também há outras artes com sementes do cerrado e fibras de bananeiras colhidas aqui, como cestas e quadros”, afirma Vera Lúcia.
Maria de Lourdes Theodoro é artesã na comunidade e informa que as peneiras e outros produtos do artesanato são feitos também a partir das fibras de taboca, matéria-prima do bambu. “O que fazemos é muito importante porque é algo passado de geração para geração. Meus pais me ensinaram e eu repassei para minhas filhas”, comentou.
Sobrinha de Maria de Lourdes, Lauriany Santos é cozinheira na comunidade. O artesanato não foi a única tradição cultural herdada de sua mãe. Quando o assunto é comida salgada, ela prepara com frequência, arroz carreteiro, arroz com guariroba, frango caipira com quiabo e churrasco ao fogo de chão. Já quando se trata de doce, prepara rapaduras, melados, doces de leite e de mamão.
“Quando eu era mais nova, nem imaginava que os pratos que minha mãe preparava com tanto carinho pudessem ter um reconhecimento tão grande. Hoje vejo que as pessoas estão curiosas sobre a nossa comida, querem aprender, experimentar e até levar um pedacinho da nossa cultura para outras partes. É emocionante saber que a nossa gastronomia faz parte do cardápio de quem vem nos visitar”, opina Lauriany.
A jovem cozinheira explica que a gastronomia que é levada e apresentada nas festas, encontros e feiras que acontecem na associação e nos atrativos, surge primeiro nas casas e é um dos elementos da tradição cultural de seu povo, um elo de valorização entre o presente e o passado.
“Aqui todos temos receitas especiais e compartilhar isso é uma maneira de mostrar quem somos. Quando os visitantes vêm aqui e experimentam nossos pratos, eles sentem a alma do lugar. É por meio da gastronomia que conseguimos mostrar a nossa cultura e nosso cuidado pelo o que temos. Então quando vendemos ou oferecemos isso, estamos ajudando a comunidade crescer, criando oportunidades para todos”, complementa Lauriany.
Festival na Associação
Em 2013, foi inaugurado o primeiro Festival da Rapadura na Associação dos Pequenos Produtores Rurais Quilombolas de Furnas do Dionísio. Uma festividade que acontece anualmente em agosto e dura dois dias, na qual toda a produção da comunidade é vendida, com ênfase para a rapadura. Fazem parte da programação, apresentações de danças típicas, como Catira, capoeira e Dança do Engenho Novo. Em 2017, o Festival se tornou Patrimônio Histórico e Cultural de Mato Grosso do Sul, com isso, a divulgação nas redes sociais foi ampliada para atrair mais visitantes.
“As pessoas contam que o Festival surgiu a partir do trabalho de liderança das mulheres que produziam a rapadura, que se uniram e montaram um grupo para pensar em um evento onde pudessem vender suas coisas”, comemora Vera Lúcia.
Comments